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Hoje, para além do fundo do meu quintal, eu vi carambolas maduras. Sem que me apercebesse, fui tomado por uma saudade, saudade do tempo que eu era criança. Depois da escola atravessava a rua com os amigos (que não sei mais onde andam) e iniciamos a aventura de pular o muro do asilo para apanhar carambolas maduras e, como o silêncio é coisa desconhecida para crianças, não demorava muito para chegar a zeladora dos idosos e nos fazer a mesma pergunta de sempre: por que vocês não foram pedir? Essa pergunta nos colocava como grandes criminosos, o que aumentava o desejo e dava mais sabor às frutas, e enquanto a mulher nos xingava, descíamos depressa da árvore, pulávamos o muro com rapidez, com a ponta da camisa segurada pelos dentes e as carambolas dentro da bolsa que fora formada pelo tecido. Na rua era lugar e momento de rir e comer, eu e meus amigos, que não sei onde andam, de mordidas em mordidas íamos nós, mordendo quina por quina.

Hoje estou um pouco cansado, se não o estivesse talvez voltaria no tempo em que eu era criança e pularia o muro novamente para morder as quinas das carambolas, mas o tempo ou pela rua da escola e hoje tenho apenas mordido as quinas da vida, as duras e vivas quinas da vida. E os amigos de outrora mudaram de rua, mudaram de roupa e mudaram de rosto! Talvez algum deles ainda segure a ponta da camisa entre os dentes para não deixar cair a fruta doce do ado. E eu? Eu seguro a vida entre os dentes, roendo as quinas, me esfolando em muros, com um aperto na boca como quem come uma carambola verde. Eu? Eu ando me desfazendo em crimes cometidos contra mim mesmo, e não encontro ninguém para me dizer que eu poderia ter pedido permissão para não sei o quê. Eu? Eu ando me perdendo entre os becos e me esquecendo da escola, da escola que já nem me lembro o que aprendi; eu ando me embriagando do amargor da vida e tentando sentir o cheiro de infância; eu ando meio cansado, cansado de andar e dar em quinas, quinas que não são doces, são vivas quinas que me machucam e dói por fora e por dentro.

Dói no peito apertado que não queria se despedir, mas foi obrigado a fazê-lo. Hoje me encontro de frente para um espelho embaçado – ou talvez seja meus olhos que assim estão – e não enxergo mais nada e por isso o corpo se debate e tenta fugir como um criminoso, fugir de uma cadeia sem portas e sem janelas. Debruço hoje na meia parede da varanda e olho para além do fundo de meu quintal, as carambolas estão todas maduras, sinto que estou caminhando para o muro antigo perto da escola e talvez não seja preciso pular novamente. Hoje as carambolas estão todas maduras e furadas por pássaros que levaram meus sonhos, e o último dos pássaros, que também roubou meus sonhos, tinha um olhar indeciso que me indagava por dentro e me deixava em perigo sem nada perguntar, que me olhava profundo e se mantinha em silêncio sem nada me declarar. Esse, que também roubou meus sonhos, deve estar sonhando agora, cuidando de flores brancas.

Artigo de Matias da Silva

1 comentário

  1. Belo texto! Melancólico, mas bonito. Uma memória literária que se transformou em artigo, em crônica… Parabéns, Matias!

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